Pratos típicos do Vale
A comida típica paulista ainda existe em muitas cidades do Vale do Paraíba. Ela é simples e saborosa, além de ter “sustança”, como se diz na cultura caipira. Nasceu com a chegada dos europeus e dos negros que, juntamente com os indígenas, criaram boa parte dos pratos nacionais. Durante os séculos, muitas receitas foram modificadas, com a inclusão de novos ingredientes. Em muitos casos, o prato melhorou, mas, em outros, perdeu a tradição histórica. A contribuição de diversos povos propiciou variadas receitas, destacando-se as preparadas com mandioca, milho, cana-de-açúcar e carne de porco. Surgiram, dessa maneira, o virado, ou feijão-tropeiro, as paçocas, as doçarias e quitandas, o uso das pimentas e o “fogado”, típico do Vale do Paraíba, em São Paulo.
Com suas andanças, os tropeiros foram levando sabores, trocando produtos e fazendo a mistura que hoje praticamos em nossa cozinha. Muitos pratos, como o virado de feijão – ou virado paulista – nasceram nesse tempo. Nas entradas e bandeiras, que saíam de São Paulo para desbravar o sertão, parte do pessoal plantava, de trecho em trecho, alimentos que poderiam ser colhidos em apenas três meses. Em alguns casos, homens ficavam vigiando a plantação de milho, feijão e mandioca, para, depois da colheita, seguirem o rastro da comitiva e levarem os alimentos; em outros, esse grupo saía na frente e esperava a comitiva, já com a colheita feita.
Com a chegada da bandeira no local do plantio, o feijão era cozido junto com as carnes de animais caçados no caminho e o milho, transformado em quirera fina e misturado ao feijão. Fazia-se, assim, um prato forte que era apreciado pelos viajantes. Veio daí à frase e o conselho para quem ia viajar pelas matas do Brasil: “Para comer, vai se virando como os paulistas”. “Se virando” transformou-se, com o tempo, em “virado paulista”, atualmente preparado com farinha de milho, torresmo e linguiça. Também desse período é o feijão-tropeiro, feito com carne-seca, linguiça, torresmo frito e farinha de milho.
Toda comitiva de viagem dispunha de um pilão. A paçoca era a alimentação principal, pois se levava carregamento de farinha de mandioca ou de milho. No caminho, matavam-se os animais do mato ou pescava-se. O produto conseguido era “moqueado” (assado), à moda dos índios, que, na época, trabalhavam como carregadores. Eram eles que ensinavam os segredos da caça e da pesca pelas matas. Depois de secas, essas carnes eram jogadas no pilão junto com a farinha e socadas até formar uma massa grossa. Assim, a carne assada ficava seca e podia ser transportada por muitos dias. Para completar, consumiam um pedaço de rapadura.
Na região do Vale do Paraíba e nas serras gaúchas, o pinhão foi o grande alimento dos viajantes, já que essa castanha demora até quatro meses para estragar. Também no Vale, a tradição de comer içá foi destacada por Monteiro Lobato, que não abdicava dessa iguaria. Com base nesse movimento, certos estudiosos da alimentação no Brasil consideram que a comida mineira é um desdobramento da que foi levada de São Paulo, já com os pratos formatados. Ocorreram algumas mudanças, como o virado de feijão transformando-se em tutu. O tropeiro trouxe mandioca, levou o milho, plantou a cana-de-açúcar, conservou a carne de porco, plantou feijões, descobriu o arroz e mostrou as frutas tropicais. Ele foi o responsável por essa “misturança”, formando a base da alimentação brasileira por vários séculos.
O cardápio tropeiro
Mandioca
Na realidade, o índio chamava a essa raiz de manioca, hoje conhecida como mandioca. Desse tubérculo eles faziam farinha, mingaus e até uma bebida alcoólica, que os europeus aprenderam a saborear. Com a chegada dos equipamentos e da sabedoria dos europeus, sua lida foi melhorada, transformando-se na famosa farinha que conhecemos até hoje em um dos tripés básicos da alimentação no Brasil.
Milho
Junto com a mandioca, os exploradores descobriram outra novidade: o milho, alimento milenar descrito pelos viajantes que se encantaram principalmente com o de pipoca, que virava “flor”, quando jogado no fogo. O milho moído nas famosas “pedras de ralar” virava quirera ou fubá grosso. Assim, era cozido e saboreado. Os índios não tinham o hábito de misturar os alimentos. Moqueavam a carne, cozinhavam o milho, faziam a farinha de mandioca e comiam em separado, jogando o alimento direto na boca.
Cana-de-açúcar
Pela necessidade, os europeus trouxeram a cana e a técnica de fazer o açúcar. Em pouco tempo, a produção de rapaduras, açúcar mascavo e melado tornou-se o grande negócio, principalmente nos engenhos do Nordeste, cuja produção era enviada para o Sul. Aos poucos, os engenhos alastraram-se, de modo que cada região tinha sua produção. Com o açúcar abundante, a doçaria, regalia dos senhorios, ficou popular. Nessas circunstâncias, bastou pegar as frutas tropicais abundantes, colocar num tacho e deitar açúcar: estava inventado mais um sabor brasileiro. Outra inovação foi à cachaça, que fez a fortuna de muitos engenhos, e que ganha cada vez mais espaço em mercados estrangeiros.
Porco
Os colonizadores trouxeram consigo suas criações, incluindo carneiros, cabritos, galinhas, gansos, cavalos e gado. Mas o animal que mais se adaptou, devido ao clima úmido e à falta de pastagens, foi o porco. Bastava soltá-lo numa pequena mata que ele se virava, revolvendo pântanos e comendo raízes. Desse modo, o porco se tornou, em pouco tempo, a fonte principal de gordura para a alimentação diária. Esse nutriente, aliás, os índios já o retiravam dos porcos-do-mato, antas e outros grandes animais. A banha de porco, além de tempero, tornou-se “geladeira” dos alimentos, pois era utilizada para conservar todo tipo de carne. Por isso, há a famosa “carne na banha”, prato encontrado em muitas pequenas cidades do interior.
Feijão
Os índios tinham seus feijões tropicais. Os portugueses, por sua vez, sempre apreciaram feijão, principalmente o branco. Os negros já adoravam o feijão-preto. Isso tudo foi chegando e entrando porta adentro das nossas cozinhas, formando muitos pratos apreciados até hoje. Adicionando-se o arroz, vindo com os europeus, formou-se o prato mais famoso do Brasil: o arroz com feijão.
Carne-seca
O tropeiro levava sempre carnes e toucinho salgados para aguentar a viagem. O que muita gente não sabe é que, para tirar o sal do toucinho, o cozinheiro usava um artifício muito simples. Cortava o alimento em pedaços, colocava numa panela e adicionava mais um punhado de sal. Quando a água estava começando a ferver, ele mexia bem e eliminava todo o líquido, deixando o toucinho sem sal. É conhecida a expressão “estou por cima da carne-seca”, cuja origem relaciona-se ao fato de o tropeiro que possuía o mantimento ser considerado rico. Eram os tropeiros de tropas de fazenda. Os outros, que trabalhavam por conta própria, eram os jornadeiros e raramente tinham essa vantagem. Por isso, para dizer que se estava bem, usava-se essa expressão.
“Fogado” secular
Um dos pratos mais característicos da região do Vale do Paraíba é o afogado, mais conhecido como ”fogado”. Sua história remonta há mais de um século. De acordo com antigos cozinheiros, fazendeiros e pesquisadores, o prato nasceu de forma muito simples. Consta que os fazendeiros matavam as vacas mais velhas para fazer carne-seca, cujo modo de preparo ajuda a conservar e amolecer a carne endurecida pela idade dos animais. As patas eram rejeitadas pelos senhores, mas aproveitadas pelos escravos e, posteriormente, empregados das fazendas. Essas partes eram cortadas e colocadas em grandes panelas, apenas com água e sal, por uma noite inteira, “afogando” em fogo brando, para amolecer.
Com certeza vem daí o nome “afogado” ou, popularmente, “fogado”. Um detalhe é que o prato não tinha gordura, somente o mocotó e o tutano do osso, que lhe davam um sabor especial. O molho era à base de urucum, alho, cheiros-verdes, alfavaca, e hortelã-pimenta. Esses dois últimos ingredientes ajudariam na digestão, segundo os negros, responsável pela adição à receita.
A comida do tropeiro
Apesar de ter à disposição imensa variedade de alimentos, quer na natureza, quer nos pousos e fazendas em que parava, o tropeiro alimentava-se no dia-a-dia com uma comida que, embora simples e prática, tinha muita “sustança”, como eles mesmos diziam. A alimentação básica em sua jornada era feijão, arroz, carne-seca e toucinho. Havia, também, os acompanhamentos, como farinhas de milho e de mandioca, sal, alho, açúcar e pó de café. Logo de madrugada, o madrinheiro, um jovem, acordava e colocava o feijão para cozinhar, enquanto os outros arriavam a tropa e colocavam as cargas nos animais. Depois de cozinhar o feijão, fritava-se o toucinho, completando-o com farinha de milho, de forma a preparar um feijão-tropeiro bem gordo.
Esse era o café da manhã. O resto do feijão cozido, sem tempero, era colocado num caldeirão e levado no “saco de trem” para o almoço do caminho. Na parada, o madrinheiro fritava mais torresmo, tirando o excesso de gordura. Juntava, então, o feijão já cozido aos temperos e à farinha de milho, fazendo, novamente, o feijão-tropeiro. Os mais abastados acresciam carne-seca e linguiça defumada ao feijão. O arroz podia tanto ser simples como misturado com pedaços de torresmo frito, fazendo, assim, o arroz tropeiro.
Para completar, fazia-se o café, fervendo a água e adicionando o pó e o açúcar. Retirava-se a bebida do fogo e colocavam-se dois pedaços de carvão, com o propósito de decantar o pó, de modo que nem o coador era necessário. O tropeiro tinha um equipamento básico de cozinha, o “jacá de caldeirão”, feito de bambu. Nele, eram colocados um casal de panelas (caldeirão e panelinha) de ferro, pratos, canecas, colheres e uma ciculateira. Nesse conjunto, ia também à trempe, que consistia em três ferros: dois para fincar e um para servir como travessa, onde eram penduradas as panelas. Em alguns casos, esse equipamento era improvisado com madeira verde e usado uma só vez. Havia, ademais, o “saco de trem”, que consistia em um saco branco com mais saquinhos dentro, nos quais se guardava feijão, arroz, farinha de mandioca, sal, açúcar, alho, toucinho salgado e pó de café.
Naturalmente, aos poucos, novos produtos foram incorporados, com a chegada de imigrantes, mas essa base continua até hoje, em qualquer cozinha que se preze. Não há como falar em comida brasileira sem considerar-se paçoca, farofa, torresmo, farinhas, feijões, açúcar ou arroz. Trata-se, portanto, de uma cozinha em que as aventuras do tropeiro ajudaram a temperar.